Aprendendo com as restrições

on domingo, 27 de fevereiro de 2011
Não venho aqui contar o como me machuquei nem o porquê. Venho refletir o "depois" do tombo/acidente de bicicleta e escrever sobre a relação que faço dessa experiência com a experiência criativa.
Então comecemos com uma descrição de como estou. Tentem imaginar: O CORPO - parte frontal - um mosaico de machucados, um real festival de dores que se encontram em lugares em oposição, formando linhas/vetores de impedimentos de movimentos.
Descrição: no lado direito, de cima para baixo, temos a maçã do rosto, como osso, roxa e arranhada, o queixo inchado, o quadril com pontos costurando o buraco, cotovelo ralado, impedindo o levantar do braço que se encontra duro, mão direita leve ferimento. No lado esquerdo o cotovelo também ralado e o joelho gravemente ferido o que deixa a perna esqueda sem movimento também e a mão muito muito ralada, por isso ela não fecha nem abre.
Ah, esqueci de dizer que o peito direito está ralado e estou amamentando a Olívia. Apenas um detalhe, rs.


Faz sete dias que, mesmo em processo de melhora, e com super ajuda do maridão e de algumas pessoas como Rosilda e Mapi, estou nesse estado. Faz sete dias também, tempo que parece uma ETERNIDADE, que venho lentamente tentando sobreviver, nas tarefas diárias, diante dessas restrições: comer com a esquerda, vestir uma saia sem dobrar o joelho, falar sem mexer o queixo, mastigar só com o lado esquerdo, sentar sem dobrar a perna, caminhar tipo gueixa, escrever no computador com um dedo, dormir sem pousar os cotovelos na cama, dar de mamar sem tocar na Olívia e por aí vai.

É uma situação trágica e também engraçada e ando tirando proveito para descobrir novas formas de mover e também pensar em como o cérebro/corpo é automatizado. Parece que está gravado no cérebro o como fazer, mas na hora H, por exemplo, não dá para escovar os dentes ou pegar a xícara daquele jeito de sempre, pois o corpo falha, realmente ele não faz a ação como fazíamos. Então é preciso URGENTEMENTE um estado de alerta, pausa grande, escuta, para então tentar uma outra solução muscular/óssea.

A lentidão e a atenção são as leis que operam os novos procedimentos de sobrevivência. O pensar sobre que parte do corpo coloco antes e o que vem depois é o exercício. Tentem imaginar como é entrar no carro, no dia de ir tirar os pontos no hospital ou para pegar uma xícara ou lavar o cabelo. Uma novela mexicana. Problemas que são duros de resolver e, se bobear na nova atuação, mais dor e ralação, rs.

Isso me lembra muito as experiências que nos propormos para criar dança. Quantas vezes em processos nos lançamos restrições para ver se algo diferente aparece no corpo. Não pode isso, não pode aquilo etc... Muitos nãos para ver se emergem novos sins, novos modos. A tal desfamiliariazção do olhar, da ação que é preciso acontecer para realmente tecermos um tipo de arte que busque entender os nossos hábitos, mas que principalmente desestabilize esses padrões de comportamento para haver a tal transformação. Transformação do corpo e das relações desse com quem nos vê. Um tipo de arte que faça a gente ver uma coisa sob diferentes ângulos e que promova novas configurações de movimentos.

Sei lá, se estou viajando, mas esse meu estado intenso me lembrou muito de estados performáticos que construímos na e pela persistência, comprometimento com o instante, na resolução de problemas. Como artistas, estamos sempre à procura de novos problemas para nós.

Espero que meus problemas voltem para o universo do artístico e não mais para como sobreviver a um acidente.

Abraços.

Gladis Tridapalli

4 comentários:

Unknown disse...

Todas essas restrições de mobilidade em nosso corpo, a dor e o desconforto são sinais de que algo está errado, e nós, estudantes do corpo, logo queremos compreendê-las. Quando nos encontramos numa situação onde o corpo não funciona mais como uma unidade composta de diferentes partes móveis, começamos a refletir como agir e ser outra possibilidade. A autonomia que esses momentos nos proporcionam, por mais que isso pareça estranho, pois estamos mais dependentes do que nunca, fazem a gente compreender o que significa adaptação e compensação. A autonomia está realmente quando buscamos o auxilio e o reequilíbrio. E isso é muito artístico...

Abraço sem encostar nos braços....
Mabile ou Mapi para os íntimos

..................... disse...

(este cometário seria para o post "quem somos nós" mas como não consegui vai aqui mesmo...)

É muito bom saber quem são vocês e melhor ainda é poder acompanhar o movimento de cada um e de todos juntos. Bom é poder ver a marca de vocês no espaço, real e virtual. Creio que esta atitude virtual é mais uma concretização de muita força física, corporal, muito movimento envolvido.
Deixo um enorme beijo para cada um, e meu orgulho em ve-los trabalhando sempre a favor do movimento de idéias a partir de ações.

com carinho
vivi

joubert disse...

Gladis

Um acidente, mesmo indesejável, é um evento, um acontecimento do/no corpo. Quantas vezes quase nos ocorreu algo e escapamos por um triz? Ou, dada a prontidão da memoria do corpo, minimizamos certos imprevistos? Pequenas quedas cotidianas, quase acidentes diários, algo como antes de acontecer de fato já aconteceu antecipa ao evento como outro evento interno. Sei que nunca estamos preparados, mas também não estamos totalmente despreparados. Quando criança, cai de um pé de siriguela (fruta tipo cajá), lá de cima, quase 4 metros, e no percurso da queda, remomoro-recriando, vim negociando com galhos e folhas até chegar ao chão (corpomente), e no final apenas parti minha unha, certo que foi muito sangue mas muito pouco comparado ao que poderia ser e de algum modo foi (mentecorpo)...E os machucados, putz, sofremos, mas como seu relato diz, novas formas de mover carecem dessses sustos, corpo que é sistema imune, cria atalhos, faz gambiarras, alias, lembro-me muito de uma conversa nos bons-maus tempos do mestrado, sobre abdução, pensemos então em CORPO ABDUTIVO...tem piada e nào só. Melhoras pra gente, pois dançamos mas antes e contudo somos humanos! beijo.

entretantas produz disse...

Gladis, entre palavras que desenham e me possibilitam criar e compartilhar algumas imagens e sensações, o que mais me cutuca no seu relato é a escolha de "pausar", reolhar e vivenciar esse momento como experiencia de conhecer outros modos de se mover, de se conhecer. E assim, vejo que as pessoas que tem o gosto incessante por pesquisar e entender a vida e suas relações, acabam demonstrando diariamente esse gosto ao experienciarem a vida como aprendizado, e não apenas como sobrevivência!!

Um beijo!!!
Lud

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